martes, 4 de noviembre de 2008

Notas sobre Caliban

Retamar, Roberto Fernandez. Todo Caliban. La Habana: Fondo Cultural del ALBA, 2006.

Obs: Seguem alguns comentários ao texto indicado abaixo. São trechos de um fichamento, que obviamente não coloco inteiro aqui, pois ficaria intragável... A edição que utilizo é diferente da que está disponível on-line.

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Parte 1: Una pregunta

[Colocação da questão]

O poeta cubano constrói neste brilhante ensaio[1] o conceito-metáfora “calibanesco” (Caliban – Canibal) como eixo de um programa descolonizador. O texto se destaca além da sua força teórico-política de um bom manifesto, pela riqueza de referências a fontes de cultura latino-americanas. Pensamento sobre América desde Nuestra América.

Sua reflexão parte de uma indagação feita por um jornalista europeu quanto à existência de uma cultura latino-americana.[2] Para Retamar, esse questionamento revelava uma raiz da polêmica em torno ao processo cubano que dividia naquele momento a intelectualidade européia com “visível nostalgia colonialista” e os representantes mais importantes dos escritores e artistas latino-americanos que se insurgiam contra “as formas abertas ou veladas de colonização cultural e política”. Perguntar sobre a existência de uma cultura era como questionar “nuestra própia existencia, nuestra realidad humana misma, y portanto tomar partido en favor de nuestra irremediable condición colonial, ya que se sospecha que no seríamos sino eco desfigurado de lo que sucede en otra parte”. (p.11)

Pode-se dizer que a postura criticada, longe de ser uma expressão conjuntural, revela uma maneira recorrente e mesmo predominante de ler a nossa condição, presente à esquerda e à direita. RFR vê aí um fato comum aos países que emergem do colonialismo, mas que se expressa com uma crueza singular em “nuestra América mestiza”.

Problema da identidade. Mestiçagem é acidental e marginal em África e Ásia, mas é a essência e a linha central para nós, “nossa América mestiça”. Percepção de Martí e Bolívar. [Ver Darcy Ribeiro]. José Vasconcelos “confuso, mas cheio de intuições” assinala aí o surgimento de uma raça cósmica.

Confusão à raiz desse fato. Seria deveras inusitado confundir um vietnamita com um italiano; um coreano com um inglês, como dificilmente ocorreria a alguém questionar sua existência. Por outro lado, há uma tendência a tomar os latino-americanos como aprendizes, como rascunhos ou como “desvalidas cópias dos europeus [...] assim como a nossa cultura toda se toma como uma aprendizagem, um rascunho ou uma cópia da cultura burguesa européia”. (p. 14) [Ver tipologia de Huntington para “civilizações” atuais, América Latina aparece como sub-civilização]. Língua é um elemento que aumenta a confusão, pois nosso idioma principal continua sendo o do colonizador. Nossa contestação ao colonizador se dá na língua dele! “de que otra manera puedo hacerlo, sino en una de sus lenguas, que es ya también nuestra lengua, y con tantos de sus instrumentos conceptuales, que también son ya nuestros instrumentos conceptuales?”. Essa condição paradóxica, aparece no “grito extraordinário” de Shakespeare, com o deforme Caliban que, despojado por Próspero de sua ilha, escravizado e educado na língua do conquistador, lhe desfia:

You taught me language; and my profit on’t

Is, I know to curse;

the red plague rid you

For learning me your language!

[A língua me ensinastes; e meu ganho nisso

É saber maldizer;

Que a praga vermelha caia sobre vós

Por me fazeres aprender vossa linguagem!]


(William Shakespeare A tempestade, ato I, cena 2)

Parte 2: Para la historia de Caliban

[O conceito-metáfora]

Etimologia bastante significativa (p.15-19): Caliban é anagrama de “canibal”, cuja pronúncia é derivada de “caribe”, povo que deu origem à toponímia e se caracterizou pela resistência heróica à invasão. Sentido pejorativo da palavra canibal contrasta com relato do selvagem dócil (arauco/taíno), que inspira a Utopia de Morus. Ambas imagens portanto surgem como “opções do arsenal ideológico da enérgica burguesia nascente”, à direita e esquerda. (p. 17-18) Curioso é que Montaigne, um utópico, é a provável fonte para o deformado Caliban. “Shakespeare verifica, pues, que ambas maneras de considerar lo americano, lejos de ser opuestas, eran perfectamente conciliables”. (p. 20)

Revisão de algumas leituras da obra.

George Lamming, de Barbados, é o primeiro escritor latinoamericano (e caribenho) a assumir a identificação direta com Caliban (1960) e a partir de então, ganha força essa leitura da obra de Shakespeare. (p. 29)

1969: Aimé Césaire (Martinica), Edward Kamau Brathwaite (Barbados) RFRetamar, três antilhanos, nas três línguas coloniais do Caribe, coincidem em reivindicar Caliban. (p. 30-31)

Parte 3: Nuestro Símbolo

[Reivindicação de Caliban]

Nuestro símbolo no es pues Ariel, como pensó Rodó, sino Caliban. Esto es algo que vemos con particular nitidez los mestizos que habitamos estas mismas islas donde vivió Caliban: Próspero invadió las islas, mató a nuestros ancestros, esclavizó a Caliban y le enseñó su idioma para entenderse con él: ¿Qué otra cosa puede hacer Caliban sino utilizar ese mismo idioma para maldecir, para desear que caiga sobre él la «roja plaga»? No conozco otra metáfora más acertada de nuestra situación cultural, de nuestra realidad. De Tupac Amaru, [... a] Roque Dalton, Guillermo Bonfil, Glauber Rocha o Leo Brouwer, ¿qué es nuestra historia, qué es nuestra cultura, sino la historia, sino la cultura de Caliban? (p. 31-32)

Reconhece importância e influência de Rodó, não obstante imprecisão de seu Ariel. (p. 33-36)

Problema do nome (latino, ibero, indo-americano), tensão identitária ainda hoje irresoluta.

“Asumir nuestra condición de Caliban implica repensar nuestra historia desde el otro lado, desde el otro protagonista”. (37) E a polarização em A Tempestade não é entre Ariel (intelectual da ilha colonizado) e Caliban (“rude e inconquistável dono da ilha”), mas entre Caliban [bárbaro] e Próspero [colonizador].

Parte 4: Otra vez Martí

Retamar faz uma defesa apaixonada de José Martí como precursor dessa “concepção de nossa cultura”. Situar essa defesa na construção da identidade entre a revolução e o projeto martiano de libertação nacional. Fidel considera Martí o mentor intelectual do assalto ao Moncada.

RFR recorda a sorte editorial de Martí, para registrar que “es ahora, después del triunfo de la Revolución Cubana, y gracias a ella, que Martí está siendo ‘redescubierto y revalorado’”. (39)

Inspiração em Martí transcende tradição cultural cubana, fundamenta uma cultura latino-americana de libertação (descolonização): “Para ser consecuentes con nuestra actitud anticolonialista, tenemos que volvernos efectivamente a los hombre y mujeres nuestros que en su conducta y en su pensamiento han encarnado e iluminado esta actitud. Y en este sentido, ningún ejemplo más útil que el de Martí.” (p. 40-41)

Configura uma visão “calibanesca” de nossa cultura., reivindicando o autóctone. (p. 45) Também expressa dificuldade de nomear, “definir conceitualmente” o continente, chegando enfim à “modesta fórmula descritiva” – Nossa América – que abarca as contraditórias e conflitivas comunidades que ocupam o território do Rio Bravo à Patagônia, distinguindo-nos da “América européia”. Tal concepção, dispersa por sua obra aparece sintetizada no artigo-manifesto que leva esse nome com que batiza o continente.

Prevalência da realidade americana sobre importação de teorias, diz Martí: “El mestizo autêntico ha vencido al criollo exótico”. (p.45)

RFR destaca em Martí todo um programa anticolonialista, não apenas contra o sistema de dominação remanescente em Cuba no final do século XIX, mas contra o colonialismo cultural – que não é dissociado de sua dimensão política – reproduzido pelas elites criollas pós-independências. Para usar os termos atuais do debate, trata-se de um projeto antagônico à colonialidade do poder, que se torna a base do “nacional-popular” construído pela revolução.

Parte 5: Vida verdadera de un dilema falso

[José Martí x Domingo Faustino Sarmiento]

Nesta parte, RFR analiza comparativamente o intelectual cubano e o argentino, rechaçando energicamente as leituras que os colocam em pé de igualdade, como construtores da identidade nacional. O fundamental de sua crítica: Martí representa a matriz de um projeto “nacional-popular”, mestiço e autóctone; Sarmiento é o esforço de civilização europeizante de uma proto-burguesia que tenta se firmar por cima das classes populares (ver citas abaixo, na parte referente a Borges).

Dialética do elogio da barbárie (naturalmente fadado a ser incompreendido):

“Martí, al echarse del lado de la ‘barbarie’

prefigura a Fanon y a nuestra revolucion”

Destaca-se aí aguda observação de Martí sobre como a situação colonial reduz a condição humana (antecipação de Frantz Fanon {Francês/Inglês}):

“¡De toda aquella grandeza apenas quedan en el museo unos cuantos vasos de oro, unas piedras como yugo, de obsidiana pulida, y uno que otro anillo labrado! Tenochtitlán no existe. No existe Tulan, la ciudad de la gran feria. No existe Texcuco, el pueblo de los palacios. Los indios de ahora, al pasar por delante de las ruinas, bajan la cabeza, mueven los labios como si dijesen algo, y mientras las ruinas no les quedan detrás, no se ponen el sombrero.” (50)

Parte 6: Del mundo libre

[Contra Borges]

Nessa parte, Retamar faz um ácido balanço crítico do escritos argentino. Esse é um dos pontos posteriormente matizados pelo autor, que aqui aparece com a virulência dos debates revolucionários e posteriormente retifica sua postura no que se refere ao reconhecimento da obra de Borges.

Está claro que sua crítica a Borges é uma extensão da que faz a Sarmiento, como protótipos de Ariel prestando seus tributos ininterruptos ao colonizador.

Patéticamente fiel a su clase, iba a ser otro el Borges que se conocería, que se difundiría, que sabría de la gloria oficial y de los casi incontables premios, algunos de los cuales, de puro desconocidos, más bien parecen premiados por él. El Borges sobre el cual se habla, y al cual voy a dedicar unas líneas, es el que hace eco al grotesco «pertenecemos al Imperio Romano» de Sarmiento, con esta declaración no de 1926 sino de 1955: «creo que nuestra tradición es Europa». (p. 55)

Os exemplos eleitos por RFR, bem como sua abordagem, sem dúvida estão estreitamente relacionados com o debate do processo cubano.

El diálogo al que asistimos entre Sarmiento y Martí era, sobre todo, un enfrentamiento clasista.

Independientemente de su origen, Sarmiento es el implacable ideólogo de una burguesía argentina que intenta trasladar los esquemas de burguesias metropolitanas, concretamente la estadunidense, a su país. (p. 56)

Martí – “porta-voz consciente das classes exploradas” – continuado por Mella y Vallejo, Fidel y Che.

Sarmiento – “o mais ativo, o mais consequente dos ideólogos burgueses do continente no século XIX” (56)

A pesar de su complejidad, finalmente lo heredan los representantes de la viceburguesía argentina, derrotada por añadidura. Pues aquel sueño de desarrollo burgués que concibió Sarmiento, ni siquiera era realizable: no había desarrollo para una eventual burguesía argentina. La América Latina había llegado tarde a esa fiesta. (57)

Aí está a relação direta Sarmiento – Borges:

A esta luz se ve con más claridad el vínculo entre Sarmiento, cuyo nombre está enlazado a vastos proyectos pedagógicos, a espacios inmensos, a vías férreas, a barcos, y Borges, cuya mención evoca espejos que repiten la misma desdichada imagen, laberintos sin solución, una triste biblioteca a oscuras. Por lo demás, si se le reconoce americanidad a Sarmiento —lo que es evidente, y no significa que represente el polo positivo de esa americanidad—, nunca he podido entender por qué se le niega a Borges: Borges es un típico escritor colonial, representante entre nosotros de una clase ya sin fuerza, cuyo acto de escritura —como él sabe bien, pues es de una endiablada inteligencia— se parece más a un acto de lectura. Borges no es un escritor europeo: no hay ningún escritor europeo como Borges; pero hay muchos escritores europeos, desde Islandia hasta el expresionismo alemán, que Borges ha leído, barajado, confrontado. Los escritores europeos pertenecen a tradiciones muy concretas y provincianas, llegándose al caso de un Péguy, quien se jactaba de no haber leído más que autores franceses. Fuera de algunos profesores de filología que reciben un salario por ello, no hay más que un tipo de ser humano que conozca de veras, en su conjunto, la literatura europea: el colonial. Sólo en caso de demencia puede un escritor argentino culto jactarse de no haber leído más que autores argentinos —o escritores de lengua española—. Y Borges no es un demente. Es, por el contrario, un hombre muy lúcido, un hombre que ejemplifica la idea martiana de que la inteligencia es sólo una parte del hombre, y no la mejor. (p. 58)


Segue-se polêmica com interpretação do romance latino-americano por Carlos Fuentes, cuja virada direitista data da 2ª Declaração de Havana. (p. 60-70)


Parte 7: El porvenir amenzado

[Uma cultura latino-americana universal]

RFR contrapõe o compromisso de Ariel com Próspero:

En todos estos casos, con ligeras variantes, es claro que la América Latina no existe sino, a lo más, como una resistencia que es menester vencer para implantar sobre ella la verdadera cultura... (p. 70)

À emergência de uma “genuína cultura”, gestada pelo povo mestiço através de Bolívar, Artigas, Martí, Zapata, Recabarren, Jesús Menendez...

A essa cultura, RFR reivindica com Alfonso Reyes um estatuto universal. (p. 72) De 1780 a 1970 (passando, é claro por 1959), indica as datas de construção dessa cultura:

Fechas así, para una mirada superficial, podría parecer que no tienen relación muy directa con nuestra cultura. Y en realidad es todo lo contrario: nuestra cultura es —y sólo puede ser— hija de la revolución, de nuestro multisecular rechazo a todos los colonialismos; nuestra cultura, al igual que toda cultura, requiere como primera condición nuestra propia existencia. (73)

Parte 8: ¿Y Ariel, ahora?

[O dilema dos intelectuais latino-americanos]

RFR encerra um ensaio com uma reflexão não apenas sobre os intelectuais e a revolução, mas sobre a questão da cultura no processo de transição revolucionária, reivindicando aí um caminho independente dos modelos estabelecidos.

Para comprender mejor tanto las metas como los caracteres específicos de nuestra transformación cultural en marcha, es útil confrontarla con procesos similares en otros países socialistas. El hacer que todo un pueblo que vivió explotado y analfabeto acceda a los más altos niveles del saber y de la creación, es uno de los pasos más hermosos de una revolucion. (83)

Conclui com a reivindicação que faz Che, análoga à de Martí, para que a “universidade européia” ceda o passo à “universidade americana”, ou seja, que Ariel “solicite a Caliban o privilégio de um posto em suas filas revoltas e gloriosas.” (p. 85)


[1] “As passagens da filosofia à sociologia, da ciência política à história, da antropologia à comunicação, da sociologia à literatura, não são casos de excepcionalidade, mas constituem quase que uma regra do campo universitário. Talvez por isso o ensaio, como forma de apreensão da realidade, sobretudo na tradição latino-americana hispânica, tenha sobrevivido ao processo de formalização disciplinar. Pois é de sua natureza desrespeitar a formalidade dos limites estabelecidos.” Renato Ortiz

[2] Notar a apropriação do termo “latinoamericano” com forte conotação política, provavelmente nesse momento se lhe atribua o sentido antiimperialista que conhecemos.

1 comentario:

Anónimo dijo...

Caro Gregorio, demorei um pouco a ler o seu fichamento que, por ser um fichamento, poderia muito bem descambar para o intragável. Como você mesmo disse. Cara, não compreendi tudo o que quis dizer, falta-me as referências e leituras sobre o assunto. Mas, ainda assim, eu gostei muito. É um desentendimento que não provoca distanciamento, mas sim uma vontade louca de conhecer muita mais. Puta mErda! Sinistro pra cacete! Em algum momento já tivemos alguma conversa sobre essa nossa maneira colonizada de se apresentar ao mundo. lendo aqui a sua postagem todas essas questões voltaram-me a mente. Vou usar por aí, pelas ruas e bares, de modo irresponsável, a metáfora do Caliban. Com o tempo vou compreendendo o que nós somos! Valeu.